A HISTÓRIA DOS GATOS






Qual é a origem dos nossos peludinhos ronronantes? A história do gato doméstico tem despoletado, em particular nos últimos anos, estudos que se debruçaram sobre o tema e nos permitiram conhecer melhor a origem destes pequenos felinos, bem como a sua história desde os primeiros passos junto aos seres humanos até ao domínio (propositadamente sem aspas) das nossas casas.
Uma das primeiras questões que nos surgem quando pensamos na domesticação do gato é: porque motivo os domesticamos? Aparentemente, os gatos são os únicos animais que domesticamos sem termos uma razão explicita para o fazermos.

Se verificarmos a história da nossa civilização, vemos que o ser humano domesticou vários animais para deles retirar benefícios essenciais à sua sobrevivência, fosse através do trabalho, da carne, do leite ou da lã.
E fê-lo com animais que, em modo selvagem, já viviam em grupos com hierarquias bem definidas, uma estrutura que o ser humano aproveitou para chamar a si o estatuto de indivíduo alfa e controlar esses grupos.
Ora, os gatos não contribuem para a sobrevivência do ser humano de nenhuma dessas formas e, exceptuando os leões, os felinos selvagens também não vivem em grupos hierárquicos nem respondem perante qualquer alfa – na verdade, os gatos não são propensos a obedecer ou a seguir ordens.

Como todo o dono de gato sabe, ninguém é dono de um gato.
Ellen Perry Berkeley

Então, qual foi o nosso interesse inicial em domesticar os gatos? E será que nós realmente os domesticamos? Vamos explorar como tudo começou e perceber porque motivo se formou esta longa, bonita mas também atribulada, história entre seres humanos e gatos.
A origem dos gatos domésticos


Gato selvagem
Anteriormente acreditava-se que a origem dos nossos gatos seria africana, como uma adaptação evolutiva do gato selvagem africano (Felis silvestris cafra) e que o povo egípcio teria sido o primeiro a domesticá-lo. Porém e como vamos ver de seguida, vestígios da presença de gatos noutras partes do globo e em datas anteriores aos achados egípcios (cerca de 4 mil anos atrás) vieram “reescrever a história”.

Em 1983, no Chipre, arqueólogos descobriram uma mandíbula de gato datada de há 8 mil anos atrás. Dadas as incríveis semelhanças entre os esqueletos dos gatos domesticados e dos gatos selvagens, era difícil afirmar se os achados arqueológicos diziam respeito a um ou a outro.
No entanto, também é pouco provável que alguém tivesse decidido levar gatos selvagens para a ilha, como referiu Desmond Morris no seu livro Catwatching: “um felino selvagem em pânico, a bufar e a arranhar seria o último companheiro de viagem que a tripulação quereria ter a bordo”. Então, é plausível que esses gatos já estivessem de alguma forma domesticados e habituados à presença humana.
Humano e gato sepultados há 9.500 anos 

A prova de domesticação mais convincente seria descoberta em 2004, também no Chipre. Jean-Denis Vigne, do Museu Nacional de História Natural de Paris, e a sua equipa, desenterraram um túmulo onde estavam sepultados, lado a lado, um ser humano de sexo desconhecido e um gato de cerca de 8 meses. Ambos os corpos se encontravam sepultados na mesma direção (oeste). Mais surpreendente foi a datação desses restos mortais: 9.500 anos, ainda mais antigo do que a descoberta de 1983.

Uma vez que os gatos não são nativos das ilhas Mediterrâneas e portanto tiveram mesmo de ser transportados de barco, bem como o enterro de um ser humano e um gato lado a lado no mesmo túmulo, forneceram fortes evidências em como nessa altura as pessoas já tinham alguma relação especial e/ou intencional com os gatos.

Em Junho de 2007, num estudo baseado em análises genéticas e publicado na revista Science, os autores do mesmo afirmaram que os gatos domésticos tiveram todos origem nos gatos selvagens do Médio Oriente (Felis silvestris lybica), num processo que especulam ter começado há 12 mil anos atrás – quase 3 mil anos antes da datação do gato encontrado sepultado com o “dono” no Chipre.
A data coincide com o a expansão das primeiras sociedades agrícolas no Crescente Fértil do Médio Oriente, o que nos leva ao (provável) motivo pelo qual seres humanos e gatos deram início a esta jornada juntos.
Os gatos fizeram-se convidados, e nós aceitamos

“O que nós achamos que aconteceu foi que os gatos se domesticaram a si próprios” afirmou Carlos Driscoll, um dos autores deste estudo, ao Washington Post.
Quanto os seres humanos eram predominantemente caçadores, os cães eram os melhores companheiros possíveis e assim se deu origem à domesticação do cão, muito antes da domesticação do gato. Quando nos começamos a fixar e a cultivar as terras, abriu-se uma janela de oportunidade para os gatos.

Com a produção agrícola começaram a surgir ratos – que ameaçavam essa mesma produção – e os gatos terão basicamente ficado fascinados com a quantidade de presas (ratos) que haviam junto daquelas criaturas gigantes de aspeto estanho (humanos). Por consequência, os seres humanos da altura também terão ficado encantados com a capacidade de eliminação dos ratos por parte daqueles felinos em miniatura.

Uma relação simbiótica com tudo para dar certo. Os gatos fizeram-se convidados (já viu algum gato pedir permissão?) e nós aceitamos de bom grado.
Naturalmente, é de supor que as pessoas terão dado preferência aos gatos mais mansos e sociáveis, procurando afastar das suas casas e propriedades aqueles que se revelassem mais agressivos, dando assim origem a criações seletivas de gatos cada vez mais afetuosos.
Contudo, enquanto os restantes animais domésticos eram sustentados inteiramente pelo ser humano, os gatos continuaram a ter de se desenrascar sozinhos para sobreviver – na caça aos ratos e na procura de restos de comida – motivo pelo qual a sua independência e apurado instinto de caça permanece praticamente inalterado até aos dias de hoje.

Não é por acaso que, regra geral, um gato na rua se parece conseguir desenrascar melhor do que um cão na mesma situação (sendo evidentemente uma situação indesejável para qualquer animal doméstico e que deve ser evitada a todo o custo). Os cães foram sujeitos a uma criação seletiva muito ativa e são hoje bastante diferentes dos seus ancestrais selvagens, enquanto que o gato mantém intactas praticamente todas as características dos gatos selvagens, incluindo uma morfologia praticamente indistinguível.

A convivência entre seres humanos e gatos nem sempre foi pacífica. A personalidade independente, a elegância os hábitos mais noturnos e solitários dos gatos despoletaram sentimentos mistos nas diversas culturas e épocas pelas quais passaram.

À conquista das nações
É bem conhecida a reverência e fascínio do povo do antigo Egito pelos gatos. Apesar de não terem sido os primeiros a “domesticar” os gatos como anteriormente se pensava, certamente tiveram um papel histórico fundamental na forma como os apreciamos e nos relacionamos com eles, tendo chegado a considerá-lo um animal divino.
Deusa Bastet, em exposição no Museu Britânico
Mosaico da Deusa Bastet | Imagem: Ancient History Encyclopedia

A deusa egípcia Bastet era representada com a forma de um gato, à qual era atribuída uma personalidade afável e forte. Diversos templos foram construídos em sua honra e milhares de gatos foram mumificados, uma prática reservada às pessoas mais importantes, como por exemplo o próprio Faraó. Os arqueólogos descobriram um cemitério em Beni-Hassan que continha nada menos do que 300 mil gatos mumificados, o que significa que o povo egípcio fazia criação ativa de gatos domésticos.

Os egípcios puniam com a pena de morte qualquer pessoa que ousasse matar um gato.
Para protegerem os seus preciosos felinos, impuseram também leis que proibiam a exportação dos gatos para outros países. No entanto, esta proibição só tornou os gatos ainda mais valiosos, o que deu origem ao transporte clandestino das “raridades” para outros países, onde eram vendidos por um preço elevado. O assunto era tido como tão sério que foram criadas “delegações governamentais” cujo único propósito era encontrar os locais para onde os gatos tinham sido clandestinamente enviados e trazê-los de volta para o interior do Egito.

Os destinatários eram os países banhados pelo Mar Mediterrâneo, que receberam os gatos provavelmente transportados em barcos fenícios.
Na Pérsia, também começaram a ser venerados. Havia a crença de que quem matasse um gato preto, estaria a matar um espírito amigo, criado especificamente para fazer companhia ao Homem na sua passagem pela Terra.
Na Grécia, os gatos não tiveram a mesma facilidade em ganhar o seu espaço junto das pessoas, pois os gregos já tinham o seu próprio controlador de roedores: as doninhas.
Mosaico de Pompeia, soterrado pela erupção do Vesúvio em 79 d.C. | Imagem: Ancient History Encyclopedia

Na Roma antiga, os gatos tiveram um papel importante como animais caçadores e animais de companhia, embora fossem considerados mais um símbolo de independência do que um animal de utilidade – uma situação que se agravou depois de o Imperador Teodósio banir os cultos pagãos: a deusa Diana tinha a imagem de um gato e rituais ligados à lua, algo que começou a não ser bem visto.
Ainda assim o Império Romano contribuiu para que os gatos formassem colónias em várias partes da Europa, pois viajavam com eles nos barcos enquanto os romanos expandiam o seu império.

Na China, o gato era visto essencialmente como um animal de companhia para as mulheres. O brilho dos olhos dos gatos durante a noite passou a ser interpretado como um poder especial para afastar demónios.
Xilogravura do artista japonês Tachibana Morikuni, de 1720
No Japão, o gato foi oficialmente introduzido no ano 999 d.C, oferecido ao imperador Ichijo como presente de aniversário. O gato foi muito bem aceite na sociedade japonesa e os gatos tricolores passaram a ser os favoritos, símbolos de sorte e prosperidade. Era proibido por lei meter um gato dentro de uma jaula ou vendê-lo.

O gato doméstico terá chegado à América a bordo dos navios de Cristóvão Colombo e outros navegadores, chegando mais tarde (por volta do séc. XVII) à Austrália ao viajarem junto dos colonizadores europeus.
A perseguição religiosa

O estatuto que os gatos tinham conquistado junto das pessoas, mudou drasticamente na Europa Medieval.
Os seus hábitos noturnos, personalidade enigmática, olhos brilhantes e caminhar silencioso diferenciavam o gato de qualquer outro animal e, numa Europa dominada pela Igreja Católica e assustada pelo aparecimento da peste negra (que se acreditava ter sido um castigo enviado por Deus) fizeram com que as pessoas começassem a associar os gatos a espíritos malignos, bruxaria e cultos satânicos.
Ilustração do séc. XVII associando os gatos às bruxas
“A Poção do Amor”, pintura de Evelyn de Morgan em 1903, com uma bruxa e um gato preto

O Papa Gregório IX, no séc. XIII, deu início a uma perseguição aos gatos que perduraria durante séculos. Numa Bula Papal de 1233, condenou o gato preto como criatura diabólica dando a sua bênção à tortura e à morte dos felinos.
Os Papas Inocêncio VII (1339-1406) e VIII (1432-1492) continuaram a incentivar ativamente a perseguição aos gatos e a instruir os inquisidores a queimarem sempre os gatos vivos juntamente com as alegadas bruxas, nas fogueiras do Santo Ofício.
Aparentemente, a única coisa que podia salvar um gato preto da fogueira naquela altura, era possuir uma mancha de pêlo branco, independentemente do tamanho ou do lugar no corpo em que se encontrasse. Era considerada uma marca dos anjos e um sinal de que aquele gato, em particular, não deveria ser sacrificado.
Sobre esta época tormentosa, Desmond Morris escreveu:

Como os gatos eram vistos como maléficos, todos os tipos de poderes assustadores lhes foram atribuídos pelos escritores da época. Diziam que os seus dentes eram venenosos, a sua carne tóxica, o seu pêlo letal (causaria asfixia se acidentalmente engolido) e o seu hálito infecioso, destruindo os pulmões e provocando consumo (NR: um dos nomes dados naquele tempo à tuberculose, devido à abrupta perda de peso dos infetados).

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